Artigo - Concordância ou Adesão ao Tratamento Farmacológico: ética e linguagem
Data de publicação: 14 de novembro de 2018
O propósito de trabalho do farmacêutico é o paciente, sendo que o corpo biológico é, por excelência, o campo de ação mediado pelo psíquico e sociocultural devendo ser cuidado de forma holística.
Neste sentido, as regras básicas do dever profissional dos atos de beneficência são: a) não causar dano; b) maximizar os benefícios e minimizar os possíveis riscos.
Infelizmente, a história da farmácia e medicina tem utilizado o princípio da beneficência como justificação para uma atitude paternal ante os pacientes.
Ante esta atitude paternal os médicos e farmacêuticos decidem o que é melhor para os pacientes sem necessariamente informá-los e sem o consentimento deles para os procedimentos e terapêutica farmacológica a serem adotadas.
Os trabalhos mais recentes de ética farmacêutica e médica têm ressaltado os perigos da beneficência, cujos efeitos ameaçam o âmago de nosso ordenamento jurídico, edificado sobre os direitos individuais e liberdades pessoais. Estes direitos incluem o direito de decidir por si mesmo se o tratamento atende ou não ao interesse próprio.
As palavras em inglês adherence e compliance são usadas como sinônimos de adesão no idioma português. No dicionário de Heinle (2004) e Longman (2005), adherence é conceituado como o comportamento individual em relação a regras, idéias ou crenças e compliance como a obediência a uma regra ou lei. No aspecto clínico, essas expressões pressupõem um papel passivo para o paciente, como a submissão deste às recomendações do prescritor e desconsiderando, assim, o princípio ético da sua autonomia e o direito à verdade sobre a sua situação clínica. Dessa forma, o fato de o paciente não atender às recomendações poderia representar uma desobediência às “ordens médicas” (princípio ético do paternalismo), o que, em algumas circunstâncias é uma ação coativa, sujeita a uma penalidade. A natureza paternalista em atendimentos de saúde é muito presente. O novo modelo de prática profissional se contrapõe a esta atitude ética, pois se fundamenta na interação direta entre o paciente e profissional, buscando estabelecer um acordo (p.ex. consentimento livre e esclarecido) quanto ao tratamento e seus propósitos. A filosofia de prática está centrada no paciente (Strand et al., 1990).
O princípio ético da autonomia estabelece o direito do paciente para sua autodeterminação, isto é, escolher e avaliar o que será feito com ele. Este direito está acima do julgamento do profissional de saúde mesmo que as decisões do paciente sejam prejudiciais para sua saúde. Desse princípio derivam procedimentos práticos: um é a exigência do consentimento livre e esclarecido e o outro é o de como tomar decisões de substituição para proteção das pessoas com autonomia diminuída ou deteriorada, que pressupõe que se deve proporcionar segurança contra prejuízos ou abusos a todas as pessoas dependentes ou vulneráveis, quando uma pessoa é incompetente ou incapaz, isto é, quando não tem autonomia suficiente para realizar o procedimento requerido. O Código de Ética Farmacêutica 119 afirma que o farmacêutico deve respeitar o direito de decisão do usuário sobre sua própria saúde e bem-estar, excetuando-se o usuário que, mediante laudo médico ou determinação judicial, for considerado incapaz de discernir sobre as opções de tratamento e/ou decidir sobre sua própria saúde e bem-estar (art. 12o, inciso IV).
Cabe ao farmacêutico garantir a proteção e respeito aos pacientes que apresentarem autonomia reduzida ou não a possuírem.
O respeito pela pessoa está focalizado na capacidade do paciente deliberar sobre suas escolhas, ações e pensamentos, sem nenhuma intromissão, livremente escolhido após juízo de consciência.
De acordo com Beauchamp e Childress (2002): A autonomia tem sido utilizada para se referir a um conjunto de noções diversas, como o autocontrole, direitos de liberdade, privacidade, escolha individual, liberdade para seguir a própria vontade, motivando seu próprio comportamento e sendo a própria pessoa em si123.
Os profissionais de saúde e os pacientes são sujeitos autônomos, que estabelecem relações interpessoais, partilham decisões sob parceria e em gozo de plenos direitos de cada um.
O princípio ético da honestidade afirma que os pacientes possuem o direito à verdade sobre a sua situação clínica, o desenvolvimento da doença, tratamentos recomendados, e opções de tratamentos disponíveis. O Código de Ética Farmacêutica afirma que o farmacêutico deve assumir, com responsabilidade social, sanitária, política e educativa, sua função na determinação de padrões desejáveis em todo âmbito profissional (art. 12.o, inciso VIII). Vale aqui a máxima de Oliver Wendell Holmes (1809-1894), médico e escritor americano, de proveito análogo para os farmacêuticos: A missão do médico é curar às vezes, aliviar freqüentemente e confortar sempre.
A honestidade e a autonomia servem como fundamentos para o direito do paciente quanto a permitir um tratamento O consentimento livre e esclarecido consiste de cinco componentes: revelação, compreensão, voluntariedade, competência e consentimento.
A revelação indica que toda a informação necessária para a tomada de decisão do paciente foi prestada. A compreensão requer que os pacientes entendam os riscos ou benefícios a que serão submetidos. A voluntariedade é a demonstração da liberdade de opção pelo tratamento farmacológico, com concordância e sem coação externa. A competência exige que os pacientes sejam pessoas independentes, com capacidade de tomar suas próprias decisões. O consentimento escrito é a garantia de que o paciente concordou com os procedimentos a serem feitos pelo farmacêutico em relação aos critérios jurídicos e éticos.
Infelizmente, na prática o direito do paciente em fornecer consentimento livre e esclarecido tem resultado em ações por profissionais de saúde em que se focaliza mais a revelação do que a compreensão do paciente.
O termo “consentimento livre e esclarecido” equiparou-se com o de “forma de consentimento” quando os pacientes são solicitados a assinar um documento antes do início de alguns tipos de tratamento. A responsabilidade do profissional de saúde é assegurar a compreensão do paciente, tudo o que ele necessita conhecer para tomar uma decisão sobre a instituição de planos terapêuticos adequados.
Os problemas criados por tratamentos inadequados, incluindo as combinações impróprias de fármacos, aliado ao uso indevido de produtos têm chamado a atenção para os riscos envolvidos nestes procedimentos e os farmacêuticos devem assumir e dividir as suas responsabilidades como profissionais de saúde para assegurar que o consentimento livre e esclarecido ocorreu antes do início do tratamento.
Nesta perspectiva, o termo concordance apresenta-se como mais adequado do que adesão ao tratamento, ao considerar a interação entre paciente e profissional (Aronson, 2007). No dicionário de Heinle (2004) e Longman (2005) concordance é definido como o estado de iniciar algo estando de acordo com ele. Tem, assim, como fundamento a negociação entre as partes, de modo que o profissional respeita as decisões, a autonomia, do paciente e os dois entram em consenso em relação à conduta a ser adotada. Para Bell et al. (2007), concordance é sinônimo de cuidado centrado no paciente.
A seleção de produtos farmacêuticos para compor a terapêutica farmacológica deve ser feita com fundamento no estilo de vida e valores do paciente. As informações técnicas devem ser repassadas ao paciente como seus riscos e prováveis benefícios, da maneira mais simples e clara possível, para aperfeiçoar a concordância ao tratamento (Stone Curtis, 1995; Longhi, 2003). No séc. V a.C., Hipócrates já citava a importância do cumprimento às recomendações médicas, especialmente quando relacionadas à terapêutica farmacológica (Dusing, 2001).
Diversos fatores afetam a anuência do paciente em relação à terapêutica farmacológica: a natureza do tratamento – a complexidade do regime medicamentoso; as características do paciente – defeitos e imperfeições da natureza humana; o tipo de doença – problemas mentais, incapacidade física, disfagia, entre outros e o comportamento do médico ou farmacêutico – atitude de entusiasmo e confiança pelo tratamento e sua comunicação com o paciente.
A concordância ao tratamento pode ser definida de diferentes formas (Monreal et al., 2002). O cumprimento é um modelo paternalista com poucas desaprovações (Stevenson et al., 2000) e sugere uma aceitação passiva pelo paciente das orientações feitas, desestimula a participação, as iniciativas e a responsabilidade do paciente sobre a própria saúde; o paciente simplesmente aceita o que lhe foi repassado. De outro lado, a concordância pressupõe uma colaboração entre o paciente e os profissionais de saúde nas decisões e em cuidados relacionados ao tratamento indicado (Ross, 1991; Peterson et al., 2003).
A prática de Farmácia é social e deve acompanhar a execução de qualquer procedimento, o farmacêutico tem compromisso fundamental com a vida do paciente e adotará princípios orientados pelo código de ética da sua profissão. No entanto, é necessário que mantenha consciência ética ao exercer a Farmácia (Dessing & Flameling, 2002).
É impossível delimitar, no cuidado executado pelo farmacêutico, onde começa a qualidade ética ou a eficiência técnica, pois estão de tal modo imbricado que, às vezes, a decisão da iniciativa é ética, mas a estratégia é técnica, em outros casos, a decisão técnica descrita em livros ou manuais de rotina é traduzida em uma postura ética de observação e respeito à vontade do paciente.
Faz-se necessário que as pessoas que atuam na assistência farmacêutica estejam atentas aos problemas éticos, podendo identificá-los e agir de acordo com os princípios do código de ética. Espera-se, também, que estejam atentas às diferentes orientações contidas na resolução de questões éticas, incluindo o respeito pela vida, pela autonomia individual, pela privacidade e pelas conseqüências da política pública e, em particular, das decisões das políticas de saúde.
REFERÊNCIAS
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Autor: Dr. Arnaldo Zubioli - Conselheiro do CRF-PR
Farmacêutico-Bioquímico (UFPR – 1974); Doutor em Ciências Farmacêuticas (UEM - 2010), Mestre em Farmacologia e Terapêutica (FMRP, USP, 1982); Aperfeiçoamento em Administração (UEM – 1984); Especialização em Farmácia Clínica (Santiago/Chile - 1990); Pró Reitor de Extensão, Ensino e Pesquisa (1982-1986) na UEM. Diretor do CPPI da SESA-PR (1991-1994); Diretor do Fórum Farmacêutico das Américas - Washington/EUA (2000-2002); Professor de Farmacologia e Terapêutica (UEM 1976 - 2015); Ética, Deontologia e Legislação Farmacêutica (UEM 1990-2015), Bioética, Biodireito e Farmacoeconomia (Mestrado/UEM-2017). Possui 113 trabalhos apresentados em Congressos e Revistas Científicas e 71 orientações de Monografias. Ministrou mais de 370 cursos e palestras. Membro Titular da Academia Nacional de Farmácia (desde 2000); Presidente do CRF-PR (1987, 1988-1999, 2014-2017) e CFF (1995-1996-1997). Livros publicados: Profissão: Farmacêutico. E agora? (1992); A Organização Jurídica da Profissão Farmacêutica (1996); A Farmácia Clínica na Farmácia Comunitária (2000); Ética Farmacêutica (2004); Consulta Farmacêutica ao Portador DMII (2014) e Farmacoepidemiologia (2017-editoração). Consultoria, Supervisão e revisão técnica de livros: Guia para a Boa Prescrição Médica (ArtMed - 1998) e O Exercício do Cuidado Farmacêutico (CFF-2006) e coautoria em capítulos de três livros sobre Farmacologia e Terapêutica (1996, 2007 e 2010). Em publicação: Tratado de Ética e Direito Farmacêutico (2017). Lançamento durante o I Congresso Brasileiro de Ciências Farmacêuticas do livro Farmácia: Bioética e Biodireito (2017). Em editoração, tratado de Ética e Direito Farmacêutico (2017).