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Antibióticos X bactérias: A corrida do século


Fonte: Super Interessante
Data de publicação: 7 de junho de 2017

Os antibióticos estão perdendo a competição para as bactérias. Em 1928, eles dispararam na frente e prometiam acabar com todas as infecções. Agora, começam a derrapar e já se deixam ultrapassar. O quadro é preocupante. Já há quem fale no fim da era dos antibióticos. É preciso buscar outros tipos de remédio.

Numa experiência, cientistas ingleses misturaram duas espécies de bactérias, a Staphylococcus aureus e a enterococcus. A primeira era quase imbatível, porque já tinha deixado para trás os mais de 200 tipos de antibióticos conhecidos, com exceção de um deles, a vancomicina. A segunda espécie, por sua vez, sabia o que fazer para derrotar justamente a tal vancomicina — e foi esse segredo que transmitiu às Staphylococcus aureus, passados alguns dias de convivência em tubo de ensaio. Isso aconteceu há dois anos, em um laboratório da Faculdade de Medicina de Londres, na Inglaterra. Mas não há rastros do estudo, a não ser uma pilha de papéis, relatando o ocorrido.

Pois os pesquisadores ficaram tão aterrorizados com o que viram — um micróbio capaz de vencer qualquer remédio — que tocaram fogo no material utilizado. Afinal, staphylococcus é um dos germes mais comuns nas infecções dos cortes cirúrgicos. Em tese, se não puder ser combatido, uma reles operação de apêndice passará a oferecer graves riscos. O pior é que os médicos têm certeza: mais dia, menos dia, numa manobra genética, a bactéria aprenderá sozinha a se defender da vancomicina. É só uma questão de tempo.

Desde que Alexander Fleming descobriu o primeiro antibiótico, a penicilina, em 1928, o homem e a bactéria disputam uma corrida — e a liderança da competição vem se alternando o tempo todo. A previsão, porém, é de que os antibióticos, as drogas milagrosas do século XX, terminem vencidos pela bactéria, um dos seres mais primitivos na face da Terra. Se isso de fato acontecer, a humanidade fará uma viagem no tempo em marcha à ré: voltará à era em que mulheres morriam de parto por causa de contaminação no sangue, quando uma simples infecção de ouvido infantil podia se metamorfosear numa terrível meningite e pequenos cortes, às vezes, provocavam até complicações fatais.

Ninguém imaginaria um cenário tão funesto, há pouco mais de dez anos. No início dos anos 80, a impressão que se tinha era de que, para quase todo mal, havia remédio. Especialmente, em casos de infecções bacterianas, já que triunfavam os antibióticos — medicamentos cujo nome significa “antivida”, mas que, na realidade, só agem sobre bactérias. Assim, a ciência médica se declarou vitoriosa e voltou para casa cedo demais. Hoje em dia, não existe absolutamente uma única bactéria que não seja capaz de se desviar, na melhor das hipóteses, de dois antibióticos. Algumas espécies, aliás, já derrotam os mais importantes grupos dessas drogas.

A bactéria pode ser comparada a um carro de F-1, que não largou na frente, mas acabou dominando a prova. Atualmente, dois em cada sete novos casos de tuberculose no planeta são provocados por micróbios ultra-resistentes. Por isso, 5% dos tuberculosos acabam morrendo, mesmo em países do chamado Primeiro Mundo. Na África do Sul, por sua vez, ainda nos anos 70, apareceram as primeiras versões de pneumococos resistentes a remédios. Estas bactérias geralmente estão envolvidas nas inflamações de ouvido que acometem as crianças e nas meningites. Pois bem: nos primeiros anos 80, as pneumococos resistentes chegaram à Europa e, pouco depois, desembarcaram nos Estados Unidos. Segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças deste país, só no ano passado 13 300 americanos morreram em hospitais, vitimados por essa espécie imbatível.

“Os germes resistentes se espalham por toda a Terra, em menor ou maior prazo”, adverte o infectologista Antonio Carlos Campos Pignatari, professor da Escola Paulista de Medicina, que passou dois anos na Universidade de Iowa, Estados Unidos, investigando bactérias resistentes. “A situação é muito séria.” De volta ao Brasil, Campos Pignatari continuou perseguindo esses micróbios, em diversas pesquisas. De acordo com o médico, ironicamente, o fenômeno da resistência é provocada pelo próprio antibiótico. Cada dose é uma bela chance para as bactérias resistentes crescerem e aparecerem. Pignatari mostra uma plaquinha de vidro, dessas usadas em microscópio, e explica: “Aqui, cabem bilhões de bactérias. E, como em qualquer população, há diferenças entre os indivíduos. Do mesmo modo como existem pessoas loiras e morenas, baixas e altas, gordas e magras — todas igualmente seres humanos —, numa colônia de bactérias de uma mesma espécie devem existir aquelas com alguma característica, capaz de torná-las resistentes”.

O antibiótico mata ou paralisa os exemplares que não possuem a marca da resistência. Com corantes, Pignatari pode exergar na lâmina uma minoria reluzente, que resistiu ao medicamento. “Isso sempre acontece, em qualquer infecção”, conta. “Mas, claro, no caso de uma simples amigdalite, a gente supõe que as próprias células de defesa do organismo consigam destruir os micróbios que insistem em viver”, exemplifica. “Portanto, o fim dos antibióticos não preocupa tanto, nas infecções simples. O problema é quando o paciente está debilitado, como quem se encontra numa UTI. Ou, sobretudo, quando a bactéria cai na corrente sangüínea, como ocorre nos cortes infeccionados.” Então, sem freios, a turma de micróbios restante começará a se reproduzir. Uma única bactéria deixa nada menos do que 16,7 milhões de herdeiros, em 24 horas. Nessa situação, o quadro típico é o do paciente que começa a melhorar após as primeiras doses de antibiótico; em seguida, tem uma recaída fatal.

O pior é que as sobreviventes são capazes de ensinar a outras bactérias o truque para enfrentar as drogas com as quais competem, como fez a enterococcus ao chegar perto da Staphylococcus aureus, naquela experiência inglesa, realizada há dois anos. Os micróbios se encostam, como em um abraço. Daí, abrem-se poros nas membranas, por onde a bactéria resistente passa um plasmídeo da resistência ao outro germe. Plasmídeo é um pedaço circular de DNA, que as bactérias costumam desprender. Foi desse jeito, por exemplo, que o micróbio causador da cólera se tornou resistente aos antibióticos comuns: em um encontro casual, ele ganhou o gene da resistência de certas bactérias inofensivas, habitantes do intestino. Afinal, por causa do local privilegiado onde vivem, essas bactérias entram em contato com todos os antibióticos orais que uma pessoa ingere no decorrer da vida. Logo, aprendem a se defender de todos eles. E, eventualmente, transmitem a estratégia genética a outros germes.

Os micróbios podem também antecipar eventuais confrontos. Em um trabalho realizado pela equipe chefiada por Pignatari, na Escola Paulista de Medicina, os pesquisadores testaram a reação de bactérias pseudomonas — outro terror dos hospitais — diante de amostras de um dos últimos hits em matéria de antibióticos. Mais precisamente, o remédio analisado era a chamada cefalosporina de terceira geração. Por trás do nome imponente, estava a esperança da indústria farmacêutica de colocar um remédio tremendamente eficaz no mercado.

Na época, há dois anos, o medicamento nem estava disponível nas prateleiras das farmácias. Mas, danadas, as bactérias simplesmente ignoraram o novo adversário. “Elas desenvolvem mecanismos para ficar fora do alcance de uma série de moléculas parecidas”, explica a supervisora farmacêutica da equipe, Irani Lúcia Leme. “Desse modo, nunca ficam resistentes a um antibiótico apenas, mas a um grupo de antibióticos. A possibilidade de se criar uma droga eficaz diminui, porque sua molécula teria de ser completamente diferente de tudo o que as bactérias já conhecem.”

Segundo Irani, as dificuldades são tantas que, muitas vezes, as bactérias obrigam os médicos a tirar medicamentos do fundo do baú. É o que fez, recentemente, a Acinetobacter, micróbio que fixa residência nas mãos. Daí, são capazes de pular para lençóis, seringas, esparadrapos — em última análise, para o organismo de um paciente. Às vezes, aliás, sua origem é a mão do próprio. Se o pior acontece, isto é, se a bactéria causa uma infecção, só há uma arma para combatê-la, uma droga criada nos anos 50, a polimicina B —que foi logo aposentada, por causa dos efeitos colaterais, extremamente tóxicos. Mas, no caso atual, é o único remédio. Irani e seus colegas encontraram a Acinetobacter em nove dos principais hospitais paulistanos — privados e públicos —, em um hospital de Campinas, em São Paulo; em outro, na Paraíba.

Uma das tarefas da pesquisadora é organizar um banco de bactérias, que atualmente reúne cerca de 2 000 colô-nias de micróbios resistentes, capturados em diversos hospitais. Os germes são conservados, vivos, em minúsculos frascos, com leite desnatado. Assim, toda vez que ocorre um surto de infecção hospitalar, investigam-se os genes das bactérias causadoras e se fazem comparações com a bagagem genética dos germes da coleção. É possível, assim, descobrir a origem do micróbio e elaborar teorias sobre como foi parar em determinada enfermaria. “Esse tipo de estudo é fundamental para evitar novas infecções”, opina o infectologista Carlos Alberto Pires Pereira, do Hospital São Paulo, um dos pioneiros em controle dos antibióticos no Brasil.

Desde 1989, antes de receitarem algum dos antibióticos presentes numa lista de dezoito dessas drogas — os mais caros e mais potentes —, os médicos do hospital consultam Carlos Alberto Pereira. “Naquele primeiro ano de controle, 17,5% dos pedidos de receita foram recusados, por serem inadequados”, lembra o médico. “Ou os antibióticos não eram necessários ou o tipo escolhido estava errado para aquele determinado paciente.” Consertando esses enganos, sugerindo aos colegas alternativas de tratamento para evitar a droga solicitada, Pereira vem obtendo uma economia de 250 000 dólares por ano. “Este, no entanto, não é o principal objetivo do controle. Sua maior função é impedir a proliferação das bactérias resistentes.”

A Organização Mundial de Saúde estima que metade das prescrições de antibióticos são inoportunas e, como se sabe, cada vez que se toma um desses remédios na hora e na dose erradas, aumentam as chances de micróbios resistentes se desenvolverem.

Às vezes, no entanto, o antibiótico entra no organismo de carona nos alimentos. Pois os animais de criação recebem, em média, trinta vezes mais dessas drogas do que os seres humanos. A razão disso não é só prevenir doenças: os remédios fazem os bichos crescer mais depressa, o que interessa aos criadores. O resultado é que as chamadas infecções alimentares — confundidas muitas vezes com intoxicações — podem ser fatais. A bactéria salmonela encontrada na carne é praticamente indestrutível por medicamentos. Como esses germes são freqüentes, a sorte das pessoas é que o calor do cozimento consegue liqüidá-los. Em um bife mal passado, porém, mora o perigo. Nos Estados Unidos, no ano passado, 6 milhões e meio de pessoas caíram doentes, após uma refeição; 500 000 morreram, entre elas, três crianças que comeram hambúrguer contaminado na famosa rede Jack-in-the-Box.

Será que não haveria uma droga milagrosa, capaz de resolver esses casos? É difícil responder. Até meados dos anos 80, os farmacologistas tinham sempre um novo antibiótico guardado na manga, prontinho para ser lançado. Mas, em 1990, foi aprovado um único antibiótico novo; em 1991, cinco; em 1992, três, no ano passado, apenas um. “É sempre muito difícil desenvolver um remédio”, defende o farmacêutico Lauro Moretto, da Universidade de São Paulo. “Em vez de lamentar, as pessoas deveriam comemorar que, ao menos, apareceu mais uma droga, para combater as infecções.” A questão é que, por melhores que sejam, 5.os antibióticos novinhos em folha.5 não são eficientes por mais do que cinco anos — vida média calculada para esse tipo de droga, hoje. “Antigamente, até surgirem bactérias com sinais de resistência a uma droga, demorava uns dez anos”, comenta o infectologista André Vilela Lomar, do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. “Agora, a saída passageira é associar antibióti-cos, na tentativa de um reforçar o efeito do outro.”

No futuro, a solução poderá ser encontrada no meio do mato — ao menos, é nisso que aposta o farmacêutico Jayme Sertié, da USP. Famoso por caçar matérias-primas para medicamentos nas plantas, Sertié acredita que as espécies vegetais contêm substâncias antimicrobianas. “Os antibióticos atuais são extraídos de fungos ou outras bactérias”, explica. “São, na realidade, verdadeiros venenos produzidos para servir de defesa contra espécies de micróbios inimigos. Eles têm várias semelhanças e só uma planta poderia conter uma molécula de estrutura completamente diferente, capaz de pegar as bactérias de surpresa.”

Outra linha de pesquisa é cancelar a corrida bactérias versus remédios. Estes seriam substituídos por outras micróbios. Faz sentido. Bactérias resistentes não são sinônimas de superbactérias. “Se fosse assim, elas seriam maioria”, raciocina Pignatari, da Escola Paulista de Medicina. “No entanto, sempre estão em minoria e só têm chance de proliferar quando as menos resistentes desaparecem, em razão dos antibióticos.” A idéia é que, na competição bactérias versus bactérias que existe naturalmente no organismo humano — o ecossistema dos micróbios — , as menos resistentes às drogas teriam alguma vantagem biológica, ainda desconhecida, que as tornariam mais capazes de colonizar e ocupar o lugar das resistentes. Ou seja, é bactéria desalojando bactéria. “Por isso, há quem imagine aplicar nos pacientes um spray de germes inofensivos, nos pontos do organismo mais sujeitos à invasão de micróbios resistentes”, conta o infectologista. “Assim, eles não achariam espaço para formar colônias e causar doenças.” Ninguém prevê o desaparecimento absoluto dos antibióticos. Mas daqui para a frente seu uso deverá ser limitado.

Para impedir a ultrapassagem

Para ganhar tempo, enquanto não se encontram alternativas para os antibióticos, médicos e pacientes devem agir como os retardatários de uma corrida. “Algumas medidas são como obstáculos ao progresso das bactérias resistentes”, diz o infectologista Paulo César Ribeiro, chefe da comissão de controle de infecção hospitalar, no Hospital Universitário da USP. Eis o que se pode fazer:

Não se deixar encantar pelo último lançamento

Na opinião de Paulo César Ribeiro, alguns médicos ficam hipnotizados diante de um antibiótico recém-chegado ao mercado. “Eles apelam para a novidade por qualquer bobagem e, com isso, as bactérias no organismo dos pacientes vão se tornando resistentes. Esses medicamentos novos só devem ser usados em último caso, quando outras drogas já não fazem mais efeito, para que possam causar grande impacto.”

Abreviar as internações

Os especialistas são unânimes na opinião de que uma pessoa deve permanecer o menor tempo possível hospitalizada. Por causa da concentração de doentes e do uso contínuo de antibióticos, o ambiente hospitalar é repleto de bactérias resistentes. “Uma simples visita é o suficiente para a pessoa sair contaminada”, garante Ribeiro. “Mas como os visitantes costumam ter saúde normal, a invasão é controlada pelo sistema imunológico, sem provocar danos.” Os médicos estimulam os tratamentos ambulatoriais, em que a pessoa vai mais cedo para casa.

Evitar as UTIs

As chamadas “unidades de terapia intensiva” são os maiores focos de bactérias resistentes. Tem lógica, porque ali se concentram os doentes mais graves e que mais utilizam antibióticos. Quanto menos tempo uma pessoa permanecer na UTI, menores as chances de seu organismo ser colonizado por micróbios resistentes que, mais tarde, poderão complicar a sua saúde.

Fugir de cirurgias e até mesmo de agulhas

Do corte de uma cirurgia a um soro no braço, passando pelo uso de catéteres, todos são procedimentos médicos que perfuram uma das mais poderosas defesas do organismo humano — a pele. Abre-se uma tremenda brecha para os germes resistentes caírem na corrente sangüínea. Além disso, há indícios de que os germes resistentes têm mais facilidade para se fixarem em equipamentos, como agulhas e catéteres.

Acabar com o mau uso dos antibióticos

“As pessoas ainda insistem em tomar antibiótico para gripe, que é uma doença provocada por vírus”, reclama o farmacêutico Jayme Sertié, da USP. “Ora, sabe-se que antibióticos matam bactérias e não vírus.” O paciente deve ainda informar ao médico o nome de outros medicamentos que eventualmente esteja tomando, porque algumas substâncias, como o ácido acetilsalicílico da popular aspirina, podem diminuir os efeitos do antibiótico, dando chance à resistência das bactérias.

Levar em conta as bactérias de cada paciente

A medida está longe da realidade brasileira, mas mostrou ser um sucesso na Dinamarca, país com apenas 0,2% de índice de infecção hospitalar. Mal entra no hospital, um paciente dinamarquês é submetido a um exame do muco do nariz. Assim, verifica-se se existem bactérias resistentes transmissíveis pelo ar. Caso haja, o paciente é mantido em isolamento, por menos grave que seja o seu problema.

Explosões e sabotagens

Os remédios antimicrobianos têm duas estratégias para vencer os adversários

As armas que destroçam

Certos antibióticos, como a penicilina, são os mais rápidos: chamados bactericidas, suas moléculas vão derretendo as paredes das bactérias, até se tornarem finíssimas. Ocorre que, momentos antes de se dividirem, os germes começam a fazer cópias de suas proteínas e, daí, o seu volume interno aumenta. Então, a membrana não suporta e o micróbio explode.

As armas que paralisam

Alguns antibióticos atuam diretamente no chamado DNA transportador, estrutura que monta as moléculas que uma célula bacteriana precisa para viver. Induzidos pela droga, esses DNAs começam a fabricar peças defeituosas. Não é o suficiente para a bactéria morrer. Mas, ao menos, com isso ela não consegue se reproduzir. Fica estática — daí o nome dessa família de remédios, os bacteriostáticos — até morrer de velhice ou ser aniquilada por células imunológicas. Quem toma esse tipo de medicamento não nota os efeitos de uma hora para outra. Porque, mesmo já estando paralisada, a bactéria continua provocando os sintomas da doença.



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